A entrevista desta semana é com a artista macapaense com uma pitada do Pará, Carla Antunes. Ela tem 27 anos e trabalha como
educadora, agente cultural independente,
realizadora audiovisual independente e como ela mesma se define: "totalmente dependente do uso de arte
para se expressar…". Ufa, muitas coisas! E ela tem muito a dizer. Espia a conversa que tivemos, cheia de informações importantes, para que você conheça mais desta artista.
Espia: Seus trabalhos ficaram
conhecidos pouco a pouco com exposições alternativas. O que você pretende
transmitir com eles?
Carla: Égua! Nem sabia que eram
conhecidos...rsrsrs. Bom, comecei a expor no Espaço Aberto, em 2008, totalmente
sob pressão de um amigo da época, já que até então eu tinha muita vergonha de
mostrar qualquer coisa que eu fazia nesse sentido. Essa vergonha tinha a ver
com o fato de a partir de uma certa idade eu ter começado a usar as expressões
artísticas pra lidar com meus abismos e labirintos internos, daí me parecia
muito íntimo tudo o que eu criava o que fazia com que me sentisse meio nua com
a possibilidade de (me) expor, mas, depois que expus pela primeira vez, vi que
o que fica óbvio pra mim nem sempre fica sequer compreensível pra quem observa,
e que sempre há naquele que vê, o peso de sua subjetividade tentando fazer um
gancho com a sua própria realidade, então fui relaxando com essa ideia e até
gostando bastante das trocas que acontecem através da socialização dos
trabalhos. Não tenho um algo específico a transmitir com as coisas que faço, na
maioria das vezes eles são formas de trabalhar meus próprios monstros, ou seja,
são na verdade bem egocêntricos até (falo principalmente dos desenhos
aqui). Quase sempre rola um tom
melancólico, de estranheza, solidão… Mas não é uma mensagem intencional, é
aquilo da gente só oferecer o que tem mesmo. E isso é o que eu tenho, o que eu
sou… A parte de levar a público sai de brinde, digamos...rsrs
Espia: Como você avalia o cenário
artístico de Macapá nos últimos anos?
Carla: Bom, eu vejo arte como algo que
transcende o universo oficial da arte, entendo que a arte é uma habilidade do
ser humano, coisa de gente. Nós cantamos, dançamos, pintamos e encenamos desde
os primórdios da humanidade, então me incomoda pensar na arte dentro dos
limites das “cenas de arte” por que uma parte muito grande fica de fora… Então
vou falar o que acho a partir dessa
premissa. Acho que Macapá, e o Amapá como um todo, tem uma gente muito potente,
que dentro ou fora de circuitos oficiais é pouco estimulada a se expressar
artisticamente e a consumir produções artísticas.Sou professora de artes e várias
vezes já me peguei triste com o desprezo
que o fazer artístico recebe por muitos jovens macapaenses, o que claro não se
separa do fato de não haver políticas públicas voltadas para a expressão
artística da juventude ou mesmo qualquer
outro tipo de expressão desta parcela
tão importante da sociedade que é a maioria por aqui.
Somos um estado que nasceu de
outro e percebo que por conta disso a cultura e identidade local constantemente
apresenta crises existenciais, pois não somos Pará, mas viemos de lá, então a
origem é a mesma, temos em comum, entre outras coisas, muitos hábitos,
estéticas, expressões e linguagens e esse fato diz muito de nossa história e
cultura apesar de ser ignorado e esvaziado por aqui, talvez falte a gente
enquanto macapaense olhar mais fundo pra gente mesmo, nossa história, nossas
realidades atuais, nossa gente e se apropriar disso como vem fazendo o Pará de
forma muito bonita.
Os últimos anos são também os
anos em que comecei a me entender melhor enquanto ser social e a ter contato
com a cena local, então nem me sinto com uma visão tão ampla da coisa a ponto
de traçar uma avaliação da cena da arte daqui. Mas um fato é que eu gostaria
que a arte /cultura indígena ocupasse o espaço que é dela enquanto uma das
culturas originárias de nosso estado e do nosso país, sinto muita falta dessa
referência que é uma bagagem que nos constitui e creio que apagar ou ignorar
essa dimensão da arte e cultura brasileira é apagar um pouco da gente. Já tive
alguns alunos indígenas e foi surpreendente e triste pra mim entender que
muitos deles tinham vergonha de afirmar suas identidades, preferiam evitar
falar seus sobrenomes que revelavam suas etnias e não respondiam com orgulho
sobre os contextos de suas origens quando indagados. São pontos a serem
superados, não só em nossa cidade.
Ilustração vencedora do concurso de desenho promovido pelo Pela e Pergaminho em 2017 |
Creio que pela pouca idade do
Amapá as políticas públicas voltadas ao estímulo e fomento da arte sejam tão
raras (ou seriam inexistentes?) e isso faz com que recaia para as iniciativas
independentes muito da força da expressão artística local atual, os movimentos
alternativos, grupos, espaços artístico-culturais como o Espaço Caos - Arte e
Cultura, a Casa das Palavras, a Casa Fora do Eixo, agora mais recente o Ateliê
Índigo, o Traço Simples Ateliê de Arte, o Festival Imagem-Movimento, o
Liberdade ao Rock, o Sereia-abacaxi, a Casa Circo, o falecido Catita Clube,
inúmeros grupos de teatro, inúmeras bandas, grupos de dança, performance,
galera do rap, do grafitte, contadores de história, realizadores audiovisuais
independentes, etc. Isso acaba sendo muito fértil, por um lado, porque é nessa
dimensão do produzir autônomo que se cria com mais liberdade e se busca
construir projetos que surgem da nossa realidade, fazem sentido em nossos
contextos e são repletos de significados pra gente enquanto macapaense. Claro
que há muito o que caminharmos, como enfatizei no início, mas também vejo esse
quadro como um motor para o surgimento de mais e mais iniciativas na área. O
difícil é manter o pique para conseguir dar longevidade a essas iniciativas
independentes, visto a gama de missões que acabamos precisando dar conta.
Acho importante ressaltar aqui
que, como sabemos, estamos vivendo tempos de cólera e muita ignorância no
Brasil e no mundo, e creio que se faz extremamente necessário que estejamos
juntos (enquanto arteiros, artistas, educadores, fazedores de cultura, e todo
mundo) por que ao que tudo indica a porrada vai ser “seca” e não pensemos que
em nossa cidade vai ser diferente. A arte sempre abriu espaço pras lutas, espero que a gente
encontre nela, mais uma vez, um porto seguro pras tempestades vindouras. Já tem
infinitas tretas rolando, não vai ser fácil… Fundamental estarmos atentos e
dispostos!
Espia: Quais suas influências e o que
mudou desde os primeiros trabalhos?
Carla: Sempre fui muito atenta a coisas
minúsculas, detalhes, então linhas sempre me chamaram muita atenção… A
brincadeira do Paul Klee com as linhas, as linhas errantes do Egon Schiele, as
formas malemolentes do Klimt e a melancolia dos rostos do Modigliani, me
inspiraram bastante em algum momento da minha formação… Desenho desde sempre,
(como todo mundo rsrs), mas continuei a desenhar ao passo que fui crescendo
(como a maioria das pessoas que desenham adultas..rsrs) durante muito tempo fiz
exercícios de observação, busquei produzir desenhos realistas, por quê parecia
que era o que eu deveria fazer, estudei um ano no Cândido Portinari quando
tinha 12 ano. Me aprimorei bastante até, mas o fato é que eu demorava horrores
tentando desenhar as coisas de forma realista e aos poucos fui percebendo que
os impulsos que me levavam a criar eram urgentes demais pra eu ficar não sei
quantos dias desenhando uma coisa só é esses impulsos eram também abstratos ou
amorfos demais, fui então percebendo, num processo devagar de autodescoberta,
que o imperfeito conversava mais com o que eu sentia, e acabei me encontrando
na feiura mesmo, deixei a boniteza pra quem saca de verdade disso… rsrs No
geral, tudo que me toca me influencia de alguma forma, independente da
linguagem, músicas, filmes, histórias, textos, conversas, fotografias, a
cidade… E aí como eu me expresso com a linguagem que tiver ao meu alcance, seja
audiovisual, desenho, foto, colagem, escrita, eu acabo jogando tudo numa
espécie de liquidificador imaginário aqui dentro e as poucos vou colocando pra
fora o resultado dessa mistura em forma de trabalhos.
Espia: Agora você também assumiu a
arte de ser mãe, o que você sente que influencia no processo criativo?
Vamos lá, vou tentar não escrever
um livro aqui... rsrrs Bom, tudo isso que eu escrevi acima foi levando em conta
a Carla de até o final do mês de setembro de 2016. De lá pra cá, vem surgindo
em mim uma outra pessoa, que desconheço quase completamente (sério mesmo). A
experiência de ter a Cecília tem sido
surreal pra mim, ainda não entendi como as pessoas se acostumam com isso de
gerar alguém! Bom, a verdade é que os 3 primeiros meses são chamados de extero
gestação por alguns estudiosos por que são como uma extensão da gravidez, mas
com o bebê junto contigo aqui fora. E nesse período tu te tornas praticamente
uma árvore amamentadora, principalmente se optar por amamentar em livre
demanda, ou seja, quando o neném solicita (que é quase o tempo todo), e aí, ao
mesmo tempo em que eu tava quase explodindo de tanta coisa nova, turbilhão de
hormônios, perspectivas loucas na mente (ou seja, doida pra produzir) eu não
tinha como criar nada, por questões fisiológicas do início da vida da minha
filha e até minhas, já que fiquei com anemia profunda após o parto. Foi difícil
aceitar esse período ou pelo menos compreender o que tava rolando, até porque a
mente sofre uma espécie de reset, você se esvazia completamente em algum
momento de tanto não poder fazer o que gostaria, foi um pouco perturbador pra
mim não ter como criar enquanto isso, mesmo com todo o suporte do Alexandre e
da minha família...
Bom, atualmente a Cecília tá com 8 meses e meio, eu já
voltei a trabalhar na escola e tô confirmando que é uma loucura isso de ser
mulher, ter sua autonomia profissional e se tornar mãe hoje. Vi num Instagram
um cartaz que dizia que ser mãe hoje, é ter que trabalhar como se não tivesse
filhos e cuidar dos filhos como se não tivesse um trabalho… Acho que resume
bem. Eita, acho que nem respondi a questão inicial, mas quis dizer que
infelizmente eu ainda não consegui retomar meu ritmo de criação, fiz alguns
poucos rascunhos de desenhos, mas o que mais eu consegui fazer foram as coisas
que podem ser feitas através do celular, tipo: acrescentar cenas num roteiro de
um curta que tô escrevendo, criar um argumento pra um clipe, e escrever,
escrever, escrever (nunca amei tanto um celular na vida, está sendo muito útil)
e aí até criei um perfil no Instagram, onde só tenho postado coisas antigas que
já estavam postadas no meu Flickr, fiz pra eu não esquecer das coisas que
transbordam em mim, da minha necessidade de criar e do meu amor por isso, mesmo
que eu não esteja conseguindo produzir quase nada no momento. Ah, no ano
passado consegui fazer uma série de
fotos que chamei de Via Láctea, as fiz no alto da minha dificuldade em lidar
com as dores da amamentação e com a impossibilidade de sentar num canto e desenhar,
foi a principal criação minha pós
Cecília e a temática se voltou
completamente pra esse nosso momento. Ter tido uma filha com certeza vai
transformar muita coisa mas minhas criações artísticas, até por que eu já não
sou a mesma, mas, por enquanto, fico no aguardo de saber como vai ser isso
exatamente, por quê eu também ainda não sei já que a Cecília em si tem sido
minha principal obra.
Espia: Cite três coisas que
atualmente você não dá a mínima
Carla: Égua, essa foi a mais difícil de
responder… Acho que não consigo não dar a mínima pra nada, isso até se torna um problema em vários momentos…
rsrs Mas, só me vem em mente que atualmente não vejo problema nenhum em comer
comida “babada” ou de pegar em cocô… rsrs É isto.
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Texto que Carla Antunes escreveu quando soube da gravidez e bateu o medinho:
‘Quanto tempo alguém é capaz de permanecer sentado sobre as sombras de sua própria solidão? De que matéria são feitos esses dias tão pesados que passam tão l e n t o s como quem nem gostaria de passar? Quantos demônios cabem nessas horas seculares em que tudo cabe mas nada convém? Quantos anos passaram-se hoje? Quantos terão passado até junho do ano vindouro? Quantas eus passarão até lá? Pode dar à luz quem só conhece à sombra? Onde a centelha divina? Onde o eu maior? Onde fui parar que não me encontro? Entrei em coma ontem e não consigo acordar. É escuro e devagar aqui. Ouço ao longe muitas vozes. Gosto da experiência de passar o dia a ouvir o silêncio, de não traçar palavra alguma, de não produzir som nenhum, de só ser e escutar. Há tanto lá fora e eu insisto em entrar. Mais um tanto de hectares inexplorados a descobrir. Sem asas desta vez... Com todas as forças que minha pequenez pode ter, com toda a densidade que a carne do meu coração carrega e todo o sentimento que possa caber em meu útero. Eu te enxergo e te abraço, peso de tudo o que não me é conhecido. Abismo do desconhecido, não sem medo, te digo: vem!
Para conhecer mais das várias artes de Carla Antunes, espia aqui:
Ela também tem um blog: www.inigmivel.blogspot.com e faz Video: “Quedas e quedares”:
https://youtu.be/gKUOevt6GtQ
Por Camila K. Ferreira
Nota 10, amo essa professora, exemplo de ser artístico.
ResponderExcluir<3
ExcluirJá declarei que sou fã da Carla. Mas é bom repetir: sou muito fã dessa mulher! Acompanhei o trabalho dela através de algumas exposições, mas principalmente através dp blog e não tem como não amar a forma como ela se expressa, tão humilde, serena, humana. <3
ResponderExcluirAi mana. <3
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