In cinema Cotidiano crítica

“mãe!”, “Blade Runner” e a religião como alegoria da busca pela humanidade no cinema

A Arte explora os diversos tipos de sensações, a princípio, como mero entretenimento, mas também, e principalmente, como um estimulante para se visualizar de forma mais completa possível não as respostas, mas as questões que podem nos mover como humanidade e seres racionais. E o cinema é, acima de entretenimento das massas, uma forte ferramenta contra a cegueira semiótica que toma conta da maioria das pessoas e que é agravada pela arte de consumo, aquela produzida em grande escala, com grandes orçamentos, na qual a pirotecnia entorpece tanto os sentidos que nos torna cada vez mais incapazes de racionalizar as ideias.

Mas, de vez em quando, essa mesma indústria que nos entorpece, movida por artistas que prezam, acima de tudo, pela consciência e pelo pensamento reflexivo e contestador, nos presenteia com obras como esses dois filmes que estrearam nos cinemas recentemente: “mãe!” E “Blade Runner 2049”.


Sobre o primeiro, ele é dirigido e escrito por Darren Aronofsky. Diretor de obras polêmicas e viscerais como Réquiem para um sonho e Cisne Negro, ele se utiliza de uma forte alegoria para criticar a humanidade. E essa crítica pode ser, de diversas formas, ofensiva para muitos que não estão preparados para visualizar as chocantes e confusas cenas que permeiam a obra. Trata-se da história de um casal que não tem nome, e que nos créditos finais são nomeados de Ele, com “E” maiúsculo, e mãe (assim mesmo, tudo minúsculo). Morando numa casa distante de qualquer traço dos seres humanos, Ele (Javier Bardem) é um poeta com bloqueio criativo que tenta ter inspiração para uma nova criação. A mãe (Jennifer Lawrence) parece ser apenas uma simples dona de casa que ama cuidar do lar. De repente, a casa começa a receber visitas repentinas de pessoas que, bem recebidas por Ele, fazem da casa não só um lar provisório, como vão aos poucos tornando este lar um verdadeiro templo do caos.


Sobre Blade Runner 2049, trata-se de um filme dirigido por Denis Villeneuve, continuação do clássico cult de 1982. Mas, nesse caso, vou falar especificamente sobre o primeiro filme, dirigido por Ridley Scott. Na história, Rick Deckard é um Blade Runner, uma pessoa especialista em caçar replicantes (que são máquinas criadas à imagem e semelhança do homem para trabalhar em exploração espacial e cuja presença na Terra é proibida), que é designado para caçar e matar quatro desses replicantes que fugiram de uma estação no espaço e estão em busca de seu criador na Terra para prolongar seu período de vida, que é de apenas 4 anos.

A partir daqui vou explanar algumas coisas acerca das alegorias utilizadas nos filmes e, durante a explicação, podem haver alguns spoilers. Por isso recomendo que leiam o restante do texto apenas depois de verem as referidas obras.


As alegorias contidas nos filmes citados são predominantemente religiosas. Em “mãe!”, Aronofsky usa os textos bíblicos de forma metafórica para criticar a humanidade, que toma conta do planeta sem levar em consideração o mal que está fazendo a ele. No caso em questão, o personagem de Javier Bardem é como se fosse Deus, que é bondoso com aqueles que cultuam a sua criação, se tornando uma entidade vaidosa e de certa forma arrogante, e parece se esquecer que a mãe entra em colapso cada vez que a casa (Terra) é invadida pelos humanos que Ele colocou lá, que Ele permitiu não só habitarem, mas tirarem proveito de cada objeto encontrado (uma metáfora para a destruição da natureza), sem se darem conta de que é isso que faz com que a casa seja completamente destruída, após ser transformada num pandemônio sangrento e cheio de bizarrices.



Em Blade Runner, que é uma história um tanto quanto simples, a trama se torna uma complexa alegoria em seus simbolismos. Roy, vivido de forma intensa por Rutger Hauer, e os replicantes que o seguem, buscam contato com seu criador, mas isso para tentar utilizar seus poderes para proveito próprio, para terem mais vida. Aqui, os símbolos vão ficando claros à medida que a trama avança. Na ambientação e no design de produção, que bebem da fonte dos filmes noir, a escuridão e a frieza da Los Angeles retratada remetem à solidão e falta de empatia humana de seu protagonista, interpretado por Harrison Ford. Ironicamente, ele é designado para matar as criações dos humanos, é um anjo da morte com a missão de abreviar ainda mais a já curta vida daqueles que buscam apenas a oportunidade de não terem sua existência relegada a simples objetos. E a incrível cena em que Roy, o líder dos replicantes, ao invés de matar Deckard, o salva, demonstra a subversão da dicotomia herói/vilão, na qual o vilão demonstra ter mais empatia com a humanidade do que o próprio (anti)herói, surpreendendo-o, bem como ao público também.

Esse é apenas um ponto de vista. Muitos podem considerar obras artísticas baseadas em conceitos religiosos uma difamação à religião ou aos seus símbolos, como ocorre atualmente no Brasil, onde os conceitos de certas obras e performances artísticas são subvertidos para fins politiqueiros. Porém, na maioria das obras artísticas, é necessário que se faça uma reflexão utilizando os paralelos da simbologia apresentada na religião, em suas histórias, seus dogmas, como um retrato das nossas relações como seres humanos. Em suma, a ética, a moral e outras questões são panos de fundo para discursos que podem alimentar o ódio a fim de fomentar uma “caça às bruxas” brasileira, como a que ocorreu nos anos de 1950 nos E.U.A., na qual vários artistas tiveram a reputação, e em consequência, suas carreiras, destruída por conta do ódio ideológico despertado na população com o propósito de desqualificar o senso crítico e de formar uma população adoradora do militarismo e nacionalismo em detrimento do humanismo e do livre pensamento, e como já disse Walter Lippmann, quando todos pensam o mesmo, ninguém está pensando.

Um abraço e até a próxima.

Por Roberto Dias


Correalizador e curador do Festival Imagem-Movimento. Faço parte da Equipe do Clube de Cinema em Macapá e escrevo sobre filmes, política, dia-a-dia e artes em geral no blog cinema etudo .

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